As incertezas sobre a imunidade coletiva

Revista Pesquisa FAPESP
09/09/20
Frances Jones
LOCALIDADE
Brasil - Todos

Uma questão ronda a comunidade científica desde que a pandemia de Covid-19 se alastrou com força pelo globo: qual porcentagem da população precisa estar imune ao vírus Sars-CoV-2 para que o ritmo de transmissão comece a perder força e eventualmente cesse? Não há ainda uma resposta definitiva para essa questão, assim como para várias outras envolvendo o novo coronavírus. “Ainda há muito a ser discutido entre os cientistas, mas o que podemos dizer com certeza é que, como planeta, como população global, estamos longe dos níveis de imunidade necessários para fazer parar a transmissão da doença”, declarou o epidemiologista irlandês Mike Ryan, diretor-executivo do Programa de Emergências da Organização Mundial da Saúde (OMS), em entrevista coletiva no dia 18 de agosto. “Precisamos focar no que de fato podemos fazer agora para suprimir a transmissão. E não contar com a imunidade de rebanho para a nossa salvação”, continuou.
Formulado nas primeiras décadas do século passado e mais difundido nos anos 1970 com o aumento do uso de vacinas e das campanhas de vacinação, o termo imunidade coletiva, também conhecido como imunidade de rebanho ou de grupo, vem sendo objeto de acalorados debates dentro e fora da academia. O conceito abrange duas ideias. A primeira é de que a probabilidade de contágio em uma população diminui quando aumenta, nessa população, a proporção entre imunes e suscetíveis. A segunda, nada óbvia e que foi descoberta por meio da construção de modelos matemáticos, é de que, mesmo ainda havendo suscetíveis, há um percentual de imunes – que varia conforme a infectividade do patógeno na população e a dinâmica das interações no interior da população – que já é suficiente para determinar uma taxa de contágio desprezível, ou seja, para determinar a erradicação do patógeno.
Por isso, não é preciso vacinar toda uma população para erradicar o patógeno. A descoberta dessa segunda ideia foi importante para a definição do conceito.
A noção é fundamental no planejamento de imunizações contra doenças como sarampo ou poliomielite, que foram praticamente erradicadas após campanhas bem-sucedidas e tiveram recaídas recentes com falhas na cobertura vacinal da população e o recrudescimento de movimentos antivacina.
O epidemiologista Paulo Lotufo, professor de clínica médica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), defende que o termo imunidade de rebanho só deve ser usado em saúde coletiva para definir um alvo a ser atingido no contexto de vacinação – e não como forma de “administrar” uma epidemia. “Do modo como está sendo colocado, parece que virou um objetivo [de política pública] e esse é o problema. Isso se torna um grande desejo, mas é uma questão antiética. Ao falar que existe essa possibilidade, estimula-se que não se faça nada e que as pessoas morram”, acrescenta.
No começo da epidemia, as autoridades do Reino Unido deram uma guinada em seus planos de combate ao Sars-CoV-2 depois que especialistas apresentaram as estimativas de mortes decorrentes de Covid-19 se nada fosse feito até que se atingisse a imunidade coletiva. O número foi calculado em torno de 250 mil óbitos no país, que tem cerca de 68 milhões de habitantes. Lotufo fez as contas para o Brasil, no início da pandemia: a inação poderia custar 1,5 milhão de vidas.
Passados cinco meses da declaração da OMS sobre a existência da pandemia e da ampla disseminação do Sars-CoV-2 de forma desigual pelos países, não há um consenso sobre o limiar necessário para que se atinja a imunidade coletiva e não se sabe se alguma região do mundo já chegou a esse patamar.
“Todos os artigos sobre esse assunto são preliminares”, afirma o bioquímico Hernan Chaimovich, professor aposentado do Instituto de Química da USP e ex-presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “A Covid-19 é uma doença muito nova que exige o uso dos melhores modelos, mas eles podem estar equivocados. Não porque sejam pouco precisos, mas porque não se tem conhecimento suficiente sobre o vírus. Dependendo das suposições feitas, pode-se chegar a qualquer número.” A fórmula clássica para calcular o limiar parte do conceito do número básico de reprodução da infecção, conhecido como R₀ (erre zero), indicador que mede a infectividade de um patógeno em um ambiente no qual ninguém adquiriu imunidade a ele. Cada doença apresenta um R₀ diferente. Ao sarampo, por exemplo, atribui-se normalmente um número básico de reprodução entre 12 e 18. Ou seja, uma pessoa transmite a doença em média para pelo menos outras 12 pessoas.
Na Covid-19, esse número foi calculado entre 2,5 e 3. Isso quer dizer que uma pessoa infectada passa o vírus, em média, para entre dois e três indivíduos. Quanto mais alto o R₀, maior a porcentagem necessária de pessoas imunes para conferir proteção coletiva.
Por esse cálculo, o limiar da imunidade coletiva no caso do Sars-CoV-2 seria de 0,60. Ou seja, pelo menos 60% da população teria de ser imune ao patógeno para atingir essa condição. Estaria, portanto, muito longe dos números apontados por estudos epidemiológicos que verificam a presença de anticorpos contra o novo coronavírus em populações de diversas regiões do mundo.
Na Espanha, um dos países mais afetados pela pandemia, por exemplo, um estudo publicado em julho na revista The Lancet indicava que apenas cerca de 5% da população havia testado positivo. Para a cidade de Nova York, divulgou-se o número de 21%. Um artigo divulgado em agosto liderado pelo Imperial College de Londres com testes de anticorpos em toda a Inglaterra encontrou uma prevalência de menos de 6% na população. Londres foi a cidade que apresentou os números mais altos: 13%.
N o Brasil, o segundo país com o maior número de casos e mortes no mundo, com mais de 120 mil óbitos registrados no fim de agosto, o mais amplo estudo populacional sobre o novo coronavírus é o Epicovid19-BR, coordenado pelo Centro de Pesquisas Epidemiológicas da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no Rio Grande do Sul. Na terceira e mais recente fase de testes (até o fechamento desta reportagem), realizada entre 21 e 24 de junho, verificou-se uma prevalência da presença de anticorpos de 3,8% da população brasileira.
Os números diferem bastante conforme a região do país e o município pesquisado. A cidade com a maior prevalência de anticorpos detectados até agora entre a população brasileira foi Sobral, no Ceará, com 26,4% das pessoas testando positivo. Na primeira fase, eram apenas 2%, na segunda, 22,1%. Os resultados surpreenderam os pesquisadores, principalmente na região Norte, onde o sistema de saúde local entrou em colapso em várias cidades. Em Breves, no Pará, embora a prevalência tenha sido de 25% na primeira fase do Epicovid, na segunda e na terceira fase os números caíram para 12,2% e 9,4%, respectivamente. Em Manaus, a porcentagem subiu entre a primeira e a segunda fase do estudo (de 12,7% passou para 14,6%). Na terceira fase, porém, o número de pessoas que tiveram detectados anticorpos contra o Sars-CoV-2 diminuiu para 8%. Em São Paulo, capital, as prevalências foram de 3,3%, 2,3% e 1,4% nas fases 1, 2 e 3, respectivamente.
“No início do nosso estudo, esperávamos que a prevalência de anticorpos só aumentaria a cada fase, pois o pressuposto era de que os anticorpos durariam pelo menos alguns meses”, conta o epidemiologista Aluísio Barros, professor da UFPel e integrante da equipe científica do Epicovid19-BR. “Mas a história dessa epidemia tem sido um grande aprendizado para todo mundo e um enorme desafio. O conhecimento existente sobre imunidade em geral e acerca da ideia de imunidade coletiva está sendo colocado à prova”, diz.
Uma das hipóteses levantadas pelos pesquisadores para os achados contrários ao esperado, com cidades apresentando queda na prevalência, é a de que a quantidade de anticorpos cai relativamente rápido após a pessoa se recuperar da doença para níveis indetectáveis ao teste usado no estudo, que tem sensibilidade de 85%. “Se essas pessoas que tiveram contato com o vírus estão imunes ou não, apesar dessa queda nos anticorpos, ninguém sabe”, diz Barros.
Os cientistas também investigam a possibilidade de uma parcela da população contar apenas com a proteção dos linfócitos T, um outro tipo de defesa do corpo (ver Pesquisa FAPESP nº 294), e nem sequer produzir anticorpos.
Isso também ajudaria a explicar por que em certos lugares, como Manaus, a epidemia tenha arrefecido mesmo com as prevalências de anticorpos muito abaixo dos 60% ou 70% inicialmente previstos para conferir uma imunidade coletiva. “Aparentemente, várias coisas acontecem em paralelo e nada está comprovado. Tudo é meio especulativo”, afirma o cientista da UFPel.
Ele acredita que a imunidade coletiva tenha sua parcela de responsabilidade pelo que ocorre nessas cidades. “Provavelmente houve uma redução do número de pessoas suscetíveis na população”, diz. “Só que essa coisa é mais complicada do que foi colocado no início. Há evidências de que, embora o vírus seja novo, nem todo mundo é suscetível igualmente, por uma série de razões, seja por essa imunidade celular ser eventualmente desenvolvida em função de diferentes infecções, seja por um componente genético ou outros motivos.” Dois artigos científicos divulgados recentemente enfatizaram a importância da heterogeneidade das populações para modelar e predizer o limiar da imunidade coletiva. Um deles, publicado na Science em meados de agosto por dois pesquisadores do Departamento de Matemática da Universidade de Estocolmo, na Suécia, e um terceiro cientista da Escola de Ciências Matemáticas da Universidade de Nottingham, no Reino Unido, aponta que a imunidade coletiva pode ser alcançada com uma taxa de infecção de cerca de 40% da população. Isso ocorreria porque a transmissão e a imunidade estão concentradas entre os membros mais ativos da população, que em geral são pessoas mais jovens e menos vulneráveis.
O segundo artigo, ainda não revisado pelos pares, foi postado no repositório de preprints medRxiv no fim de julho por um grupo coordenado pela matemática portuguesa Gabriela Gomes, professora da Universidade de Strathclyde, na Escócia.
O modelo sugerido por eles, calculado a partir de dados de quatro países (Bélgica, Espanha, Inglaterra e Portugal), tem como resultado limiares de imunidade coletiva menores ainda, entre 10% e 20%.
O médico brasileiro Marcelo Urbano Ferreira, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e coautor do estudo, explica que as diferenças de risco de infecção numa população podem se dever tanto à variação na exposição quanto às distinções na susceptibilidade à infecção. “As infecções naturais agem como um processo seletivo, fazendo com que os indivíduos de maior risco sejam os primeiros a contrair o vírus. Assim, acabam por reduzir o risco médio de infecção entre os suscetíveis que restam na população”, diz. O modelo também leva em conta as medidas de proteção e distanciamento social tomadas pelos diferentes governos e sua aderência pela população.
“Esse fenômeno dinâmico poderia explicar por que, mesmo com o retorno às atividades normais em diversos países europeus, as proporções de indivíduos infectados mantêm-se abaixo das previsões iniciais”, aponta o médico do ICB.
Ferreira coordena um projeto, financiado pela FAPESP, que investiga a magnitude e a duração da imunidade protetora e a proporção de infecções que escapam à notificação em comunidades do interior da Amazônia. Os dados colhidos em campo permitirão testar alguns pressupostos dos modelos matemáticos e refinar sua capacidade preditiva.
Por serem contraintuitivas, as predições sobre o limiar da imunidade coletiva causam espanto entre o público leigo e não são referendadas por todos os especialistas. “Esses números devem ser vistos com ressalvas”, pondera o médico Claudio Struchiner, professor da Escola de Matemática Aplicada da Fundação Getulio Vargas (FGV) no Rio de Janeiro e pesquisador aposentado da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “É um trabalho importante, que traz um novo raciocínio, mas ainda precisa ser confirmado.” De acordo com Struchiner, um problema do argumento defendido pelo artigo é que se chega à faixa de 10% a 20% em boa medida em razão da diminuição da mobilidade das pessoas e da adoção de práticas higiênicas, por pelo menos uma parcela da população. “Se você diz ‘chegamos ao limiar’, as pessoas param de praticar esse comportamento seguro. Relaxam e deixam de usar máscaras e lavar as mãos, começam a ir a shoppings e restaurantes. Ao mudar o comportamento, podemos estar adicionando lenha na fogueira.” Struchiner não considera que o limiar da imunidade coletiva em cidades como Manaus ou Rio de Janeiro tenha sido atingido. “Na minha opinião, não acho que possamos abandonar todas as medidas e práticas de comportamento seguro.” O epidemiologista José Eluf Neto, professor da Faculdade de Medicina da USP e presidente da Fundação Oncocentro de São Paulo, também recomenda cautela.
“Estamos conhecendo a Covid-19 agora. A realidade vai se transformando e os pressupostos usados pelos modelos matemáticos vão sendo mudados à medida que conhecemos mais a doença”, sustenta. “Uma questão muito séria, por exemplo, é que pouco se sabe sobre a reinfecção. As limitações de modelos matemáticos são bem conhecidas. Contudo, na atual pandemia, com inúmeras incertezas no tocante ao vírus e à história natural da infecção, muitas predições têm sido divulgadas sem alertar para suas limitações. Por isso, é preciso ser prudente.”

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