Dourado x Cerri

Revista Época
15/01/21
Renato Grandelle
REGIÃO
Sudeste
LOCALIDADE
Brasil - São Paulo
CIRCULAÇÃO
395951

Os médicos divergem sobre se os mais ricos devem ter o direito de pagar por vacinas contra a Covid-19 em clínicas privadas

DANIEL DOURADO, brasiliense, 41 anos

O que faz e o que fez: pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de Sã0 Paulo (USP). É formado em medicina pela Universidade de Brasília (UnB) e em Direito pela USP

GIOVANNI CERRI, italiano, 67 anos

O que faz e o que fez: vice-presidente do Instituto Coalizão Saúde (Icos). É formado em medicina pela Universidade de São Paulo (USP), onde fez doutorado em radiologia

Como o governo deve se posicionar sobre a entrada das clínicas no mercado das vacinas?

DANIEL DOURADO A postura dos governos estaduais e federal deve ser de requisitar as vacinas compradas pelo setor privado até o SUS ter o estoque necessário. Depois, quando já tiver a quantidade suficiente, o poder público paga uma indenização às empresas. Não sou contra a iniciativa privada, mas não faz sentido que ela entre nesse mercado agora, em um momento em que o imunizante é um bem escasso. Estamos em uma situação emergencial, e o Estado deve ter prioridade.

GIOVANNI CERRI Depende da quantidade de vacinas que o Ministério da Saúde conseguirá adquirir para fazer a vacinação. Se houver imunizantes suficientes no SUS, não vejo problemas em oferecê-los em paralelo no setor privado, o que aumentaria o poder de distribuição dos produtos no país. Acredito que o governo federal não precisará requisitar vacinas para o setor privado. Temos dois grandes centros de produção de vacinas no Brasil, o Farmanguinhos e o Instituto Butantan, cuja produção de vacinas deve atender a demanda dos grupos prioritários da Covid-19 em médio prazo. Imagino que no começo do segundo semestre. Quanto à vacina Covaxin, que está sendo importada pelas clínicas, sua entrada no mercado brasileiro dependerá da Anvisa.

Em várias partes do mundo, governos financiam estudos sobre vacinas e são responsáveis por sua aquisição e distribuição. Qual seria o impacto da entrada do setor privado nessa cadeia em um país de dimensões continentais e populoso como o Brasil?

DD É importante salientar que a inovação é uma área tradicionalmente desenvolvida pelo setor privado, mas também há investimento do poder público. Essa parceria é comum na indústria, inclusive na farmacêutica. O problema é que o Ministério da Saúde se omitiu no caso da Covid-19. Segundo a Constituição, o governo é o responsável pela compra de vacinas essenciais, que garantirão a quantidade suficiente de imunizantes para uma população-alvo. Mais de 75% da população brasileira é usuária exclusiva do SUS. Se ele não cumpre seu papel, o sistema de saúde universal deixa de existir, e o acesso aos recursos fica restrito a quem pode pagar por eles. Uma associação das clínicas particulares firmou o compromisso de comprar 5 milhões de doses da vacina indiana Covaxin. É uma quantidade muito pequena, considerando que provavelmente precisaremos de 400 milhões para imunizar toda a população. Ainda assim, seria suficiente para provocar um grande impacto político, porque a elite, então imunizada, pressionará a população ainda exposta ao vírus a voltar às atividades normais, como a reabertura do comércio.

GC O sistema privado pode ajudar o governo a aumentar a capilaridade da vacinação, ou seja, proporcionaria que mais pessoas fossem imunizadas em menos tempo. Essa ação conjunta agilizaria a retomada do setor econômico. As clínicas respeitariam as regras impostas pelo Ministério da Saúde, mas, ainda assim, creio que muitas pessoas recorreriam ao programa eficiente da iniciativa privada, o que diminuiria a demanda pelo sistema público.

O governo federal tem sido criticado por “ficar para trás” na busca de imunizantes. As clínicas particulares poderiam ajudar a diminuir o atraso do país na cadeia de vacinação?

DD Como não há vacinas suficientes, a única ajuda possível que pode ser fornecida pelas clínicas é o apoio logístico — desde que seja gratuito, sem restrição a um nicho de mercado. Poderíamos usar, por exemplo, o espaço das clínicas para a campanha pública de imunização. A iniciativa privada só deveria vender as vacinas após a imunização de todos os grupos prioritários. Precisamos lembrar que grande parte da população está em condição de miséria devido ao fim do auxílio emergencial, e o Estado tem a obrigação de vaciná-la. Infelizmente, o governo só tem cumprido seu papel quando é provocado por outros Poderes. A apresentação do plano de imunização, por exemplo, ocorreu após pressão do Supremo Tribunal Federal.

GC A partir do momento que o governo federal definir o calendário de vacinação, o setor privado pode fazer com que o tempo perdido seja recuperado. Mas só é possível agir a partir do momento que as políticas públicas já estiverem definidas.

O governo deve estabelecer critérios para que as clínicas priorizem a vacinação de pessoas de grupos de risco? É possível fazer essa interferência no mercado privado?

DD Sim. Essa regulação já existe em produtos vendidos pela iniciativa privada que têm ligação com o SUS.

GC No início, as clínicas devem seguir os critérios do governo e priorizar a vacinação por faixa etária. Em uma segunda etapa, como haverá outras vacinas no mercado, então o setor poderá flexibilizar seu atendimento.

A comercialização das vacinas pode aumentar a diferença de classes, já que nem todos terão condição de pagar por elas?

DD O SUS é a maior política de redução de desigualdade social do país. É um sistema universal e equânime. Já a iniciativa privada dá acesso a serviços somente para quem pagar. Então, fornecer a vacina em clínicas significa chancelar “o cidadão de primeira classe”. O Ministério Público, o Supremo Tribunal Federal e as entidades civis não podem permitir a omissão do governo federal. Do contrário, há o risco de que a Covid-19 vire uma doença de pobre.

GC O Brasil tem um programa de vacinação considerado modelo, muito bem-sucedido. As pessoas podem recorrer a clínicas por uma questão de conforto e agilidade. Concordo que o ideal seria disponibilizar simultaneamente nas redes pública e privada um produto voltado ao combate da Covid-19 — isso inclusive aumentaria a possibilidade de evitarmos a circulação do vírus. Quando temos mais pessoas vacinadas a nosso redor, a chance de reinfecção cai em escala geométrica. É por isso que um programa que atenda só determinadas pessoas na verdade não resolve o problema de ninguém.

Há um problema ético se pacientes fora dos grupos de risco pagarem pela vacina e se imunizarem na frente de cidadãos mais velhos ou com comorbidades que não têm condição de pagar?

DD Sem dúvida. É antiético e imoral. E, ao mesmo tempo, mostra uma potencial dificuldade para o Estado: como fiscalizar para que isso não aconteça? Não é o caso de demonizar as empresas, mas a lógica da iniciativa privada é o lucro. Se sobrarem vacinas após sua compra pela população de risco, nada impediria a clínica de vender a vacina para quem não tem comorbidades.

GC Não colocaria como uma questão ética. Diria que é conveniente que, neste momento de pandemia, em uma campanha nacional, houvesse uma ordem de vacinação por critério de gravidade, e não dentro de aspectos de quem pode ou não pagar. Seria bom que todos os pacientes de grupo de risco fossem vacinados em uma primeira etapa.

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